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A PRIMAVERA ÁRABE E OS 7×1

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nov
1

jornal

 

O assistente de Scherlock Holmes certamente perguntaria: o que tem a ver uma coisa com a outra?  “Tudo meu caro Watson” responderia o enigmático detetive inglês.

Quando eclodiu a primavera árabe, o ocidente pensou que todos os países envolvidos acordariam numa democracia ao melhor estilo da terra do “Tio Sam”.

Mas não foi bem isso o que se viu.  O Egito teve a volta dos militares por meio de golpe de Estado, a Síria mergulhou numa guerra civil sem fim e, juntamente com o Iraque, abriu as portas para o assustador Estado Islâmico.

Mas o que deu errado? Na verdade, foi a expectativa irrazoável da humanidade em querer que um único acontecimento fosse capaz de pôr fim a conflitos étnicos, culturais e religiosos que existem mais ou menos desde a morte de Maomé no século VII.

E o 7×1?

Ah, o 7×1, assim como a primavera árabe, seria, para alguns, o estopim para uma mudança no futebol brasileiro.  Mas, de lá pra cá, vimos que nada mudou.

E não mudou porque a alteração  de “MENTALIDADE” da gestão do futebol brasileiro exige a presença de “NOVAS MENTES” no poder.

Mas para que isso aconteça, são necessários 2 ingredientes  incomuns no futebol desde a chegada de Charles Miller no Brasil: PROFISSIONALISMO e DEMOCRACIA.

Sabendo que de amador o futebol não tem nada, a lei 9615 (art. 27 Parágrafo 13) equipara as atividades profissionais desenvolvidas pelas entidades desportivas às sociedades empresárias para todos os fins.

Para QUASE todos…ouso corrigir.

Isto porque, para ficar em cima do muro, a lei NÃO exige que se constituam como tal, criando um verdadeiro Frankenstein jurídico: entidades  desenvolvendo atividades empresariais, mas dirigidas por amadores…

Diante desse cenário,  qual executivo ou profissional qualificado irá abdicar de suas  atividades profissionais para se dedicar integral e  “filantropicamente” a uma entidade?

Mas, o problema não para por aí,  pois ainda que se disponha, terá de encarar um processo eleitoral nem sempre transparente e igualitário.

Com estatutos alterados para atrapalhar opositores, colégios eleitorais dissimulados e escrutínios pouco confiáveis, certos dirigentes criaram a receita perfeita para impedir o surgimento de  boas e novas lideranças.

Assim, vivendo praticamente sem leis nem fiscalização do Estado, que lava as mãos como  Pilatos no credo,  o esporte de nosso país habita numa autêntica terra de Marlboro: um ambiente fértil para atrair dirigentes menos altruísticos…

Dentro desse panorama amadorístico e pouco transparente,  você ainda acredita nessa tal “primavera do futebol brasileiro”?

ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO X DESPORTO

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jul
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O Desporto alheio à regulamentação do Estado

Artigo originalmente publicado na Revista Brasileira de Direito Desportivo. São Paulo, IBDD, nº18, jul/dez 2010.

O artigo expõe como várias áreas do desporto encontram-se alheias à regulamentação e ao controle do Estado e que algumas práticas comuns no desporto violam certos direitos fundamentais do homem. Por outro lado, o trabalho também mostra como o Estado também invade certas áreas de interesse exclusivo das organizações desportivas, demonstrando que o Direito Desportivo se encontra ainda como um ramo em desenvolvimento no arcabouço jurídico nacional.

This article focuses on how many sports areas are away from governmental rules and way from de State control, as well as some of the practices adopted in sports violate the fundamental rights of man. On the other hand, the work shows that the State, in the same way, invades certain areas that belong to private sports organizations, revealing that Sport Law is still under development in Brazil.

Palavras-Chave: Desporto, Direito, Organizações Desportivas, Estado, Direito Desportivo.

O Desporto alheio à regulamentação do Estado

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Limitação de acesso ao judiciário; 3. Punições arbitrárias por doping; 4. Assédio moral na atividade desportiva; 5. Atuação abusiva na representação de atletas; 6. A criação dos direitos econômicos sobre jogadores de futebol como forma de tornar o atleta objeto de negócios jurídicos; 7. O surgimento dos contratos desportivos atípicos e a previsão de cláusulas abusivas; 8. Intervenção indevida do Estado em assuntos desportivos privados; 9. Punições excessivas pelo exercício da liberdade de expressão; 10. Benefícios indevidos concedidos às entidades desportivas; 11. Impunidade por ilícitos criminais praticados no exercício da atividade desportiva; 12. A extrapolação da interpretação acerca dos limites da autonomia das entidades desportivas e a necessidade de fiscalização do Estado; 13. Conclusão

 1.    Introdução

O desporto, ao longo dos anos, vem se transformando numa ilha. Numa ilha que se isola de um continente de acontecimentos violentos, desumanos e de tantas outras enfermidades sociais que assolam o nosso noticiário cotidiano.

Uma ilha em que se respiram ares da boa aventurança: seus praticantes são quase super-homens; seus valores corporificam os esplendores da solidariedade, do fair-play e do ideal de vitórias; Sentimentos de união nacional afloram durante competições internacionais: hinos são cantados a plenos pulmões e bandeiras são orgulhosamente agitadas em nome da pátria.

Mas o desporto organizado isolou-se também da realidade social sob outro aspecto: apartou-se consideravelmente do continente jurídico do Estado.

Capitaneado por entidades como a FIFA e o Comitê Olímpico Internacional, ele teve sua regulação nascida no seio associativo, alheio às ingerências dos Estados, sendo que o momento histórico de surgimento do conglomerado associativo também contribuiu para um afastamento inicial dos poderes públicos.

Com efeito, a formação das estruturas desportivas, tal como as conhecemos hoje, surgiram no período liberal, em que as idéias liberais e a utópica e burguesa filosofia da igualdade, aliadas à pouca importância inicial do esporte,  fez com que os poderes públicos cuidassem de se preocupar com outros afazeres considerados mais importantes à época.

Estes fatores acabaram levando a que esse espaço vazio de poder deixado pelo poder público fosse preenchido pelas organizações desportivas, conduzindo-se ao extremo de se produzir doutrina jurídica a pugnar que o direito penal deveria deter-se diante dos muros de uma arena desportiva[1].

Talvez essa breve contextualização histórica e ideológica sirva para entendermos (sem, contudo, deixarmos de condenar) certas situações de clara violação a direitos fundamentais do homem dentro do universo desportivo privado, que estranhamente passam despercebidas de muitos juristas de hoje.

Ocorre que, atualmente, esse isolamento do desporto do cenário jurídico é também movido pela precária regulação e fiscalização empreendida pelo Poder Público.

Vale ressaltar também que o Estado não raro se aproxima do esporte com objetivos nitidamente políticos, levando também, por via de conseqüência, com que suas normas, no mais das vezes, versem sobre temas em relação aos quais não deveria se imiscuir.

Os jogos olímpicos de 1936, com a busca de Hitler pela supremacia da raça ariana, o recíproco boicote dos Estados Unidos e União Soviética nas edições de 1980 e 1984, a intervenção autoritária do governo argentino na busca da vitória a todo custo na Copa do Mundo de futebol de 1978, a atuação arbitrária que marcou décadas de trabalhos do nosso extinto Conselho Nacional dos Desportos – CND – demonstra que também o Estado, ao se aproximar do fenômeno desportivo nem sempre agiu corretamente.

A seguir, apresentaremos algumas situações que se passam no mundo desportivo, que potencializam ou mesmo materializam lesões a diversos princípios constitucionais que representam os fundamentos de nosso Estado Democrático de Direito e que servem de alerta para as ilegalidades que são cometidas no dia-a-dia do exercício dessa atividade, tanto por particulares quanto pelo próprio poder público.

2.    Limitação de acesso ao judiciário 

A limitação de acesso ao Judiciário começa pela cláusula de estilo encontrada nos estatutos das entidades desportivas dirigentes, que veda aos seus filiados o recurso ao Judiciário – não apenas em assuntos desportivos, mas em todos os demais, frise-se bem – o que vem sendo acatado por todos sem maiores queixumes, pois cada modalidade desenvolve-se austeramente sob regime de monopólio, liderado mundialmente por uma federação internacional, que avoca o poder de ditar regras sobre todos os assuntos.

Mesmo tendo a nossa Constituição permitido o acesso ao Judiciário para resolução de questões desportivas, após o esgotamento das instâncias da Justiça privada especializada no assunto, são raríssimos aqueles que nele ingressam, pois temem sofrer retaliações advindas das organizações desportivas internacionais.

Agrega-se a isso que, quando raramente casos desportivos são submetidos ao Judiciário, este, por sua vez, movido por completo desconhecimento ou desinteresse, não adentra em questões que são cruciais para as partes, impedindo que desportistas possam na prática se socorrer deste Poder para resolver seus conflitos jurídicos.

Por outro lado, quando aceito ou imposto às partes o Juízo arbitral, tem-se também dificuldades geradas para os atletas e clubes menos favorecidos, vez que os órgãos máximos de resolução das disputas se situam no exterior, demandando das partes o desembolso de importâncias consideráveis, caracterizando-se como mais um desestimulo de busca aos órgãos de resolução de disputas aos que se vejam prejudicados em seus direitos.

3.    Punições arbitrárias por doping 

Certas condenações disciplinares violam rudimentares garantias processuais, como nas punições por doping, em que atletas são severamente punidos simplesmente pela detecção, em seus organismos, de substâncias que são vedadas por uma determinada organização desportiva.

O aumento dos casos de condenação de atletas sob esse fundamento deve-se primordialmente ao fato de ter sido criada a WADA – World Anti-Doping Agency- (Agencia Mundial Anti-Doping), que, a partir de 2003, passou a divulgar anualmente uma lista de substâncias proibidas, de forma a combater o doping em todo o planeta, exortando todas as nações a aderirem às suas recomendações, tendo o Brasil incorporado esse Código à sua legislação.

Entretanto, a observância cega e absolutamente mecânica a essa cartilha vem redundando em inúmeros prejuízos a clubes e atletas, que acabam sendo punidos sem a observância dos requisitos mínimos do contraditório e da ampla defesa, devidamente assegurados pela Constituição.

Parte-se, portanto, de um pressuposto que viola o básico principio de direito que é o da presunção de inocência, para, pelo contrário, presumir a culpa do atleta, esquecendo-se da regra capital de que o “ônus da prova incumbe a quem o alega”, ou seja, quem acusa o jogador por doping, deve, pelo menos, provar que ele fez uso de substância que elevou artificialmente o seu desempenho, pois, caso contrário, a sua punição não faria sentido.

Se não é possível comprovar-se a culpa, a absolvição é uma medida natural que se impõe, já que não podemos esquecer também do rudimentar principio jurídico “in dúbio pro reo”, isto é, na dúvida, deve-se absolver e não punir quem está sendo acusado, por ser esta uma garantia fundamental de todo ser humano, não devendo ser esquecido que está em jogo a reputação e a própria carreira profissional de um desportista.

Tal proceder traduz-se em genuína responsabilização objetiva, maculando, na prática, o sagrado direito da ampla defesa, já que este reside precisamente na prerrogativa do acusado de provar a sua inocência.

O que se tem observado nas decisões de boa parte dos tribunais desportivos é a automática condenação do jogador, uma vez detectada a presença de uma substancia listada pela WADA, sem que haja a preocupação em se averiguar se ela foi capaz de alterar seu rendimento, ou em identificar a real culpa do atleta ao usar medicamento proibido, o que resulta em deturpar a salutar luta de todos contra a dopagem no esporte.

Algo está errado na forma pela qual estão sendo julgadas estas questões, vez que essas decisões não resistiriam à seguinte pergunta, sobre a qual deve-se meditar: se, para condenar o atleta por doping, basta constatar no seu organismo a presença de alguma substância listada pela WADA, para que serve instaurar um processo no tribunal, apresentar-se defesa, serem produzidas provas e proferir-se uma sentença? 

4.    Assédio moral na atividade desportiva 

A industrialização e o capitalismo trouxeram consigo o desemprego e a competitividade, constituindo-se como ambiente propício a disseminar o assédio moral no trabalho, cuja conceituação tradicional advém de Marie-France Hirigoyen, que enquadra o assédio moral como “Toda e qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, comportamento, atitude…) que atente, por sua repetição ou sistematização, contra a dignidade ou a integridade psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seu emprego ou degradando o clima de trabalho”[2].

E o esporte se constitui em campo fértil para a propagação do assédio moral, já que existem três fatores que nos levam a concluir nesse sentido:

A) A existência de uma relação de hierarquia rígida entre comandante e comandado no esporte;

B) A constante pressão advinda de vários segmentos pela busca de resultados e a;

C) Tendência presente no consciente coletivo de que o atleta tem que ser mantido sob rédea curta, com pouca liberdade de atuação, sob pena de não alcançar seus objetivos esportivos.

Na primeira hipótese, pela hierarquia rígida nas relações funcionais desportivas tem-se principalmente por parte do técnico a possibilidade de exagero, já que foi outorgado pelo mundo corporativo esportivo a esse profissional, que não raro é despreparado e sem formação acadêmica adequada, amplos poderes sobre os atletas, o que nos leva comumente a presenciar:

– Aplicação de penalidades que expõem os atletas ao ridículo;

– A estipulação de penas de exclusão, como a de treinar em separado;

– A Permissão de que os atletas sofram assédio agressivo de torcedores.

Por outro lado, tem-se deparado também com assédio ascendente dos atletas em relação aos seus treinadores e dirigentes, principalmente quando intencionalmente não se empenham nas competições com o objetivo de forçarem a demissão do treinador, ou desestruturar a diretoria da própria agremiação.

Em relação ao clima permanente de pressão que se verifica no esporte pela busca de resultados, não raro se observa:

– A incitação dos atletas para o uso de doping;

– A imposição de sobrecarga de exercícios, sem respeitar-se a individualidade física de cada atleta;

– A coerção feita aos desportistas para competirem sem condições físicas;

– O estímulo para o cometimento de infrações desportivas imorais e violentas;

– A pressão para a execução de tarefas acima das forças do profissional;

– A Exposição leviana do competidor a perigos excessivos;

No que concerne a essa  necessidade quase paranóica de se coarctar a liberdade do atleta tem-se:

– A estipulação de regimes de concentração por tempo excessivo;

– O impedimento de que atletas se comuniquem ou recebam parentes nesse período e;

– A vedação aos profissionais de darem entrevistas, violando a liberdade de expressão.

O mais curioso de todos esses exemplos é que muitos desses fatos são plenamente aceitos pela comunidade desportiva e pelos próprios profissionais, mas que mascaram e congelam direitos fundamentais daqueles que exercem sua atividade no meio desportivo.

5.    Atuação abusiva na representação de atletas 

A profissão de agente de jogadores de futebol restou devidamente institucionalizada pela FIFA, que o conceitua como “pessoa física que mediante a cobrança de honorários, representa jogadores perante um clube com o objetivo de negociar ou renegociar um contrato de trabalho, ou representa dois clubes entre si com o objetivo de subscrever um contrato de transferência”.

Trata-se de um novo ator criado pela FIFA no cenário do futebol, que veio a substituir o antigo procurador com a missão de assessorar adequadamente o jogador de futebol, cuja maioria é portadora de poucas letras.

Ocorre que isso não é garantia de que o atleta estará bem assessorado, pois a matriz do futebol permitiu a heterogeneidade acadêmica na formação desse profissional, uma vez que aceitou que sejam agentes tanto aqueles aprovados num exame de admissão de pouca profundidade técnica que é organizado por ela mesma, os parentes do jogador ou o advogado regularmente habilitado em conformidade com a legislação de cada país.

Essa imprecisa regulamentação privada, aliada à ausência de normatização estatal específica, criou ambiente propício para a entrada de alguns profissionais inescrupulosos, que se tornaram, na prática, autênticos mercadores de homens, relembrando sombrios momentos de nossa história colonial.

Da forma como restou “regulamentada” essa profissão, o agente foi colocado também na potencial posição de elemento de desestabilização na relação de emprego, já que, quanto maior o número de quebra de contratos, e por via de conseqüência, maior quantidade de pagamento de cláusulas penais, maiores serão os seus lucros.

6.    A criação dos direitos econômicos sobre jogadores de futebol como forma de tornar o atleta objeto de negócios jurídicos

 Durante todo o século passado, vigorou no mundo do futebol o regime do passe, que nada mais representava do que uma quantia que deveria ser paga por um clube a outro, em virtude da transferência do jogador.

Através do instituto do passe o jogador tinha, assim, dois vínculos autônomos e independentes entre si com o clube: o empregatício que durava enquanto vigorasse o contrato e o desportivo, que permanecia mesmo depois de findo o contrato, que só se rompia com o pagamento do passe.

Ou seja, antigamente, o fim do vínculo trabalhista não rompia o vínculo desportivo do jogador com o clube e aí é que residia o problema, já que, quando o contrato terminava, a equipe se valia do passe como mecanismo de pressão e retaliação sobre o jogador: ou ele renovaria pela proposta do clube ou teria o preço do passe fixado em valores elevados, ficando sem jogar e preso à antiga agremiação, como o recém nascido que permanece ligado umbilicalmente à sua mãe.

A proposta vencedora que exortava para o fim do passe, empunhava a bandeira de que haveria definitivamente a tão sonhada liberdade para o atleta de futebol.

Como sempre houve consenso de que os clubes deveriam ser ressarcidos pelos investimentos feitos na formação de novos craques, não apenas como medida de justiça, mas também para estimular que esse trabalho continuasse a ser feito, criou-se outra fórmula legal de compensação.

Previu-se, assim o pagamento da cláusula penal – espécie de multa – em favor do clube que tenha contrato com um jogador, quando este resolver sair durante o prazo convencionalmente ajustado.

Ocorre que esse mecanismo acabou, na prática, sendo negociado pelo clube com terceiros: Empresários, agentes de jogadores, dentre outros, passaram a ser “sócios” das agremiações na percepção dessas quantias.

Surgiram, portanto, os famosos “direitos econômicos” – que trazem embutidos uma condição suspensiva -, sendo acordos que os clubes fazem com terceiras pessoas, como empresários, ou outras entidades, comprometendo-se a ceder a eles determinada parcela do valor da cláusula penal, em caso de transferência durante a vigência do contrato de trabalho do jogador.

Nota-se, portanto que, em que pesem todos os esforços do legislador, o jogador de futebol continuou a receber a etiqueta de autêntica mercadoria, posto que o mundo dos negócios ultimou por criar alternativas para continuarem a tratá-lo como tal, em clara afronta a vários princípios constitucionais, dentre eles o princípio da dignidade da pessoa humana.

7.    O surgimento dos contratos desportivos atípicos e a previsão de cláusulas abusivas

            Vários contratos surgidos nos negócios desportivos perecem no porão da atipicidade, encorajando as partes a criarem tipos jurídicos que extrapolam os limites constitucionais que protegem certas prerrogativas fundamentais das pessoas.

Veja-se, nesse sentido, a figura do contrato de patrocínio, essencial para o desenvolvimento da atividade desportiva e ainda atípico, o que serve de estímulo para que patrocinadores insiram nos ajustes cláusulas que os permitam a rescindi-los unilateralmente, por suposta violação do patrocinado à previsão contratual genérica que exige do financiado uma “conduta socialmente adequada”.

Tal proceder abre a porta para o cometimento de atos discriminatórios, pois deixa ao livre arbítrio de uma das partes avaliar moralmente uma conduta de outrem,  dizendo aquilo que é certo ou errado, além de recriar, sob o manto da simulação, o banido instituto civil da condição potestativa pura.

Cogite-se, outrossim, dos denominados contratos de parceria, ou de co-gestão que vão muito além da cessão do espaço da camisa de jogo e de propaganda estática no estádio da agremiação desportiva, em que a empresa parceira participa efetivamente do processo de administração do clube.

A inércia do legislador em regulamentar com precisão esses tipo de acordos, abre a oportunidade para que agremiações centenárias de prática desportiva corram o risco de desaparecer por força de contratos mal confeccionados e que também podem permitir o inescrupuloso recurso da lavagem de dinheiro, que nosso país já teve infelizmente a oportunidade de presenciar num passado não muito remoto. 

8.    Intervenção indevida do estado em assuntos desportivos privados 

Por outro lado, o Estado não raro intervém açodadamente no desporto, criando ilhas de ilegalidades, como costumeiramente vê-se nas competições, em que o policiamento atua sob as ordens de um árbitro, como se preposto seu fosse, chegando a usar da força física para constranger profissionais a cumprir regras meramente desportivas.

Veja-se também a confusa legislação desportiva em vigor, que muitas vezes adentra em esferas próprias das entidades desportivas dirigentes, com franca violação ao princípio constitucional da autonomia, insculpido no art. 217, Inciso I da Constituição Federal.

A título de ilustração, cite-se, por exemplo, o Estatuto do Torcedor quando, dentre outra previsões, constam aquelas que determinam a forma de preenchimento das súmulas dos jogos a serem elaboradas pelos árbitros, o número de vias, o momento de entrega desses relatórios, dentre outros excessos legislativos. 

9.    Punições excessivas pelo exercício da liberdade de expressão 

A prática forense no desporto vem demonstrando o extremo rigor com que são analisadas e julgadas certas declarações dadas aos órgãos de imprensa, contendo críticas ao comportamento da arbitragem, à conduta das organizações dirigentes e decisões da justiça desportiva dentre outras hipóteses.

É evidente que se observam excessos nessas declarações, exercendo-se irregularmente a sagrada prerrogativa da livre manifestação do pensamento, com ataques à honra de outras pessoas.

Mas é também assente de dúvidas, que a margem deixada à liberdade de expressão no desporto vem ficando cada vez mais reduzida no cotidiano de quem milita nessa área, em que críticas são, em muitos dos casos, confundidas e equiparadas a ofensas, com perigos manifestos a um dos mais importantes cânones constitucionais de nosso país.

10. Benefícios indevidos concedidos às entidades desportivas 

É da cultura política brasileira a benevolência com que são tratadas as agremiações desportivas e seus dirigentes. Em que pese alguns esforços legislativos nesse sentido, infelizmente mais uma vez a realidade dos fatos revelam a baixíssima freqüência com que entidades desportivas e principalmente seus responsáveis são efetivamente condenados por suas práticas ilegais.

Novo alerta vermelho há de ser ligado, posto que o Projeto de Lei que busca modificar a Lei nº9615/98 contém em seu art. 90 – G, a previsão de que “atos judiciais executórios de natureza constritiva não poderão inviabilizar o funcionamento das entidades desportivas”.

Além de deixar margem ao amplo subjetivismo do juiz em dizer quando é que uma penhora, por exemplo, irá inviabilizar o funcionamento de uma entidade desportiva, o dispositivo cria odioso privilégio para essas agremiações, em detrimento de seus futuros credores em processo judicial, não se observando essa benevolência em qualquer outra esfera da atividade econômica nacional.

Já é quase um padrão de comportamento gerencial das agremiações desportivas o atraso no pagamento de salários de seus profissionais, para não dizer, o eterno inadimplemento da remuneração dos funcionários, levando-os a buscarem seus direitos no Judiciário, sendo que, com a eventual aprovação desse dispositivo, não se saberá se e quando irão receber seus devidos rendimentos, os quais possuem caráter evidentemente alimentar.

11. Impunidade por ilícitos criminais praticados no exercício da atividade desportiva 

São comuns as agressões verbais cometidas aos membros das comissões de arbitragem. Entretanto, difíceis são os casos de efetiva condenação dos insultores, sob o argumento de que insultar é um comportamento socialmente aceito no esporte, atuando como se fosse uma suposta excludente de ilicitude penal e cível.

Da mesma forma, esportes de contato rendem azo a que certos praticantes se aproveitem inescrupulosamente dessa situação para lesionarem seus adversários, excedendo dolosamente os riscos decorrentes do exercício normal da atividade desportiva em questão.

Cotoveladas, socos, pontapés são infrações comuns no futebol e rotineiramente sancionadas unicamente por punições disciplinares, mas que potencializam também, por outro lado, a sua inserção no contexto das infrações penais.

Todavia, a práxis jurídica não denota a freqüência com que lesões corporais dolosamente cometidas nesse segmento sejam coibidas penalmente pelo nosso Judiciário.

12. A extrapolação da interpretação acerca dos limites da autonomia das entidades desportivas e a necessidade de fiscalização do estado

A consagração constitucional do princípio da autonomia das entidades desportivas no art. 217, inciso I, da Constituição vem sendo levado ao extremo por alguns hermeneutas, no sentido de afastar toda e qualquer presença do Estado na fiscalização dessas instituições.

O curioso é que o discurso muda radicalmente quando se pretende obter apoio financeiro desse mesmo Estado para a realização de eventos desportivos ou mesmo para viabilizar a simples subsistência das agremiações desportivas.

O que convém reter é que o destino das agremiações desportivas, muitas delas seculares, não é um assunto exclusivamente privado: não interessa apenas e tão somente aos seus diretores e associados, ou seja, àqueles que possuem um vínculo jurídico-institucional com a instituição, mas à sociedade como um todo, já que essas grandes marcas do esporte estão a tal ponto entranhadas na cultura popular que não podem, por desídia ou desonestidade de seus gestores, simplesmente se deteriorar ou mesmo desaparecer.

Neste sentido, vem a calhar o ensinamento de Celso Bastos[3], que tipifica o interesse da sociedade em torno das competições desportivas como autêntico interesse difuso, vez que as atividades ali desenvolvidas interessam a uma gama indeterminada de pessoas.

Não por acaso, é que o Estatuto do Torcedor apresenta um conceito extremamente amplo ao definir o torcedor, definindo-o como “toda pessoa que aprecie, apóie ou se associe a qualquer entidade de pratica desportiva do País e acompanhe a pratica de determinada modalidade esportiva” (art. 2o).

É com o intuito de dar às entidades desportivas a importância pública que merecem, que o legislador brasileiro, através do art. 4o, § 2o, da Lei no 9.615/98, malgrado reconhecer que a organização desportiva do País encontra-se fundada na liberdade de associação, declarou que ela integra o patrimônio cultural brasileiro, considerando-a de elevado interesse social, inclusive para os fins da Lei Complementar no 75/93, que minudencia os assuntos que devem sofrer a devida vigilância por parte do Ministério Publico.

Portanto, quando se insere a organização desportiva no âmbito do patrimônio cultural brasileiro, está-se automaticamente trazendo o Estado para atuar nesse contexto pela dupla via do incentivo e da fiscalização, haja vista que a seção II, do capítulo III, do Titulo VIII, da C.F., que cuida da questão cultural, confere ao Estado o papel tanto de estimulador dessas atividades, quanto de guardião do seu desenvolvimento, como forma de preservar a solidez de sua estrutura.

13. Conclusão

Todas essas situações nos levam a concluir que se faz necessário que se construa uma ponte entre o desporto e o direito, permitindo, simultaneamente, que a sociedade evolua conforme os valores apregoados pelo desporto e que o desporto se desenvolva dentro dos limites fixados pelo ordenamento jurídico estatal.

Por outro lado, o poder público deve também atentar para regular a prática desportiva no tange àquilo que seja de efetivo interesse da sociedade, deixando para as organizações desportivas a normatização que diga respeito ao espaço lúdico do jogo e às questões administrativas que decorram do seu exercício.

Há que se também mudar o pensamento de que no esporte seria possível afrouxarmos certas regras jurídicas aplicadas impositivamente às demais relações sociais, bem como fazermos uma diária reflexão sobre o que acontece no cenário desportivo para sempre indagarmos diante de cada situação concreta: seria ela conforme o nosso ordenamento jurídico e compatível com os princípios constitucionais fundamentais?



[1] É o que nos dá notícia Cazorla prieto. In: PRIETO. Cazorla (org). Derecho Del Deporte. Madrid: Tecnos,1992,p.30.

[2] In: DARCANCHY, Mara Vidigal. Assédio Moral no Ambiente do Trabalho. Justiça do Trabalho. Porto Alegre, ano 22, nº 262, p.24, out.2005.

[3] BASTOS Celso. Justiça desportiva e defesa da ordem jurídica. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, São Paulo, vol. 6, n o 25, p. 269, out./dez. 1998, p. 269.