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Muhammad Ali e o princípio da dignidade da pessoa humana

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jun
5

Por Martinho Neves Miranda.

A morte de Muhammad Ali por sequelas reconhecidamente causadas pelo boxe traz à tona uma reflexão sobre os esportes violentos.

Haveria mesmo permissão do nosso ordenamento jurídico para o exercício de tais atividades?

Sob o ponto de vista do direito penal, entende-se que tais práticas estariam protegidas por se tratarem de uma excludente de antijuridicidade, estando dentro do “exercício regular de um direito”.

Ivan Martins Mota destaca que, quando se fala em exercício regular de direito, não se está referindo apenas ao direito legislado, mas também ao costume.

Os esportes ditos violentos se enquadram na segunda categoria, não sendo penalmente puníveis por se tratarem de ações socialmente adequadas – aceitas pelo tecido social durante muito tempo – e incorporadas ao costume da sociedade, desde a Grécia antiga por sinal.

Mas se está de acordo com o Direito penal será que estaria também conforme a nossa Constituição, sob a qual o direito penal encontra a sua legitimidade?

Contrariamente a alguns esportes violentos, que seguem praticamente as mesmas regras de prática desde priscas eras, o mesmo não se pode dizer sobre os direitos do homem.

Nossa Constituição, por exemplo, inspirada na Declaração Universal dos Direitos do Homem, colocou o princípio da dignidade da pessoa humana como razão de ser e ponto de partida e de chegada do nosso ordenamento jurídico. Assim o diz o seu art. 1°.

Aponta Junqueira de Azevedo que dentre os elementos que integram o etéreo conceito do princípio da dignidade da pessoa humana, está o da integridade física e psíquica do indivíduo que é protegida a todo custo por nosso sistema jurídico.

Como então compatibilizar este pilar fundamental com tantas atividades reconhecidamente perigosas existentes em nossa sociedade?

Na Roma Antiga, Justiniano, ao editar o Digesto, concebeu a “teoria da aceitação do risco”, utilizada por nós até hoje e que se assenta no fato de que quem pratica uma atividade perigosa assume o risco de suportar os danos que resultem do exercício desse ofício.

Note-se, entretanto, que o que se admite é que o consentimento suponha apenas e tão somente a aceitação da eventualidade dos danos e não a certeza de sofrê-los, pois o princípio constitucional da dignidade humana não se prestaria a legitimá-lo, pelo fato de se estar diante de bens indisponíveis. Como adverte com precisão Giselda Hinoraka “o risco é uma opção, mas não [necessariamente,digo eu] um destino.”

É neste momento que se mostra necessário diferenciarmos os esportes de luta que trazem consigo o perigo de dano, como o judô, o karatê, a luta greco-romana, daqueles em que os efeitos danosos à Integridade física são absolutamente certos como o boxe e o MMA.

Enquanto aqueles não trazem a certeza da lesão física, estes últimos nos deixam na incômoda situação de sabermos de antemão que os contendores sofrerão lesões, que no caso de Muhammad Ali foram irreversíveis e destruíram quase a metade de sua vida, que foi marcada por muita dor e sofrimento nos últimos 30 anos.

É importante notar que utilizamos o princípio da dignidade da pessoa humana para vários fins, de forma a proteger o ser humano nos seus mais variados aspectos.

Assim ocorre, por exemplo, quando se discute o salário mínimo, quando se coíbe o bullying, o assédio moral, a discriminação racial, sexual e religiosa; quando se reivindica melhores condições de moradia para os que vivem em condições impróprias; quando se proíbe a tortura e o tratamento degradante, os maus tratos, etc.

E para proteger a integridade física daqueles que, à custa de suas próprias vidas, se submetem a lutas sangrentas?

Aí o princípio da dignidade da pessoa humana não se aplica?